LXXXII

As malas estavam prontas em um canto, e o Gato prontamente as estranhava, intrigado, tentando se aproximar, mas sem a coragem suficiente. Na verdade, Arlindo Orlando só arrumou as coisas todas por influência de Kátia, tendo em vista que só viajarão na sexta, tudo poderia ser resolvido na quinta mesmo – em cima da hora as coisas ficam sempre melhores, e tinha certeza de que só por ter arrumado tudo, por antecipação, faltaria algo.

Malas não trazem boas lembranças a Arlindo Orlando, há alguns anos. Fazem lembrar de quando ainda não vivia ali, naquele mesmo prédio de tantos tempos, na solidão povoada que significava aquele pequeno microcosmos da Nascimento Silva. De quando era ele em uma versão tão diferente, um Arlindo Orlando muitos passos atrás, aprendendo a caminhar em terrenos que talvez ainda hoje não saiba caminhar.  Terrenos daquelas meninas, espertas, sempre dispostas a provar que eram imprevisíveis, que se agarravam àquele pai pouco ortodoxo, em brincadeiras, como quem se distrai com um amigo pouco mais crescido – e hoje se espalhavam em lugares distantes, tão casadas e quase-mães. E era o terreno daquela outra menina, tão adulta, que lhe ensinou tantos truques, artimanhas, e que era capaz da mágica de multiplicar coisas não multiplicáveis, mas que não quis mais jogar no melhor da brincadeira.

E nisso, Arlindo Orlando teve que crescer muito, e rápido, envelhecer anos em dias e aprender a brincadeira de começar uma nova vida, por si só. E aprendeu como ninguém, a ponto de ser tão perito na arte de se virar dentro do seu território que lhe atemorizava – bastante, por sinal – aquele novo campo com Kátia. Mas agora eram aquelas bagagens, desengonçadas e simbólicas, as que lhe tiravam o sossego, em lembranças frágeis como qualquer certeza da vida. Porque Kátia era a menina sabida, que conhecia seus truques, os recantos de seu pique-esconde de sempre, e não lhe deixava direito à fuga daquele novo aprendizado, daquele novo terreno. Mas eram as malas na memória.

Então o Gato miou, e o tirou daquele avoamento momentâneo. Mas por dentro de Arlindo Orlando os anos se passavam, e desembocavam todos na lembrança de Kátia, que nesse momento lhe enviava uma mensagem no celular, dizendo sempre aquelas quaisquer coisas que agradavam tanto.

Sobre Joca Rocha

I'm a videogame writer and narrative designer, working in Brazil, at Dumativa Game Studio, since 2012. I'm also a game designer of boardgames, having published of my creations in Brazil. I have a master's degree in Languages, from UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), studying games and education. Ver todos os artigos de Joca Rocha

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